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domingo, 7 de dezembro de 2008

Vírgulas mudam o texto

por Fabrício Carpinejar

Minha mulher Ana pediu para que comprasse o livro "Grande ou pequena?". Vicente precisava para a escola. Era sexta-feira. Uma semana depois, passei numa livraria e adquiri o volume. Feliz de ter me lembrado sozinho... Sem nenhuma ajuda de um bilhete amarelo e de uma anotação na agenda.

Ao entregar a encomenda para meu filhote, Ana se antecipa e explica o rosto murcho dele:
- É tarde, já leu e realizou a prova.

Não falou por mal, não foi uma crítica e cobrança. Relatou com calma o que realmente aconteceu.

Eu suspirei como o penúltimo pai do mundo. Penúltimo ainda é pior do que o último. Restou escovar os dentes do meu sorriso amarelo.

Vicente ainda tomou o livrinho e me consolou:
- Vou ler de novo.

Por mais que me esforce como pai, estou sempre devendo. Não é bem assim, eu faço o que tenho que fazer, mas atrasado um ou dois dias. O atraso mostra que valorizo a criação, mas não tanto quanto à mãe.

Ainda mais se parto em viagens para voltar numa semana. Um ou dois dias para um filho é tudo. Perco as vírgulas dos seus recados. Em 24 horas, posso desperdiçar de ajudá-lo numa tristeza e oferecer um conselho importante diante de um desentendimento com os colegas. Resgatar um assunto é difícil, educação é momento. Com descuido, entro no infindável ciclo do "já passou" e cresce um alheamento perigoso.

Queria ser mais atento. Pontuar as frases. São manias de casa que desperdiço. Por exemplo, separei o abrigo do Vicente de manhã. Mas aquela calça apresenta um elástico mais apertado. E o ideal é que ele a use na terça quando freqüenta apenas meio-turno na escola. Eu não sabia disso. Para mim, todas as calças têm aspecto e conforto iguais. Repare, é mais uma vírgula. Com três conjuntos escolares, terei que lavar o casaco no segundo dia para não faltar no decorrer da semana. Mais outra vírgula. De aparência irrelevante, essas informações são fundamentais no entendimento de uma personalidade. A posição das vírgulas muda o texto.

O verão representa minha alforria. Enquanto a maioria descansa, trabalho a família. Eu me alinho, eu me sintonizo às sutilezas domésticas, ajustado à freqüência de suas descobertas. Percebo como as crianças estão vestindo, como sonham, como se alimentam, recupero os parágrafos de suas vozes e de seus hábitos invisíveis dentro das gavetas e das estantes.

Ouvir suas lembranças é participar do que não vivi. É ser convidado a viver de novo.

Fonte: coluna Primeiras Intenções - Revista Crescer - nº 181, dezembro/2008

Um comentário:

Anônimo disse...

Que texto lindo! Lindíssimo!!! Que grande sensibilidade... de uma sutileza tão grande que atropela nossas concepções de vida, de vida morna e sem graça. Lindo!!!